Draco ainda permaneceu alguns segundos olhando para as portas do castelo, sem pensar claramente em nada, só olhando. Estava de passagem pelo hall, depois de fazer um breve ataque à cozinha (vulgo lanche da meia-noite), quando sentiu no vento um perfume suave que pareceu-lhe vagamente familiar e, instintivamente, virou o rosto para onde julgou ser a origem do cheiro.

Fazia alguns dias desde a noite em que finalmente conheceu a tal escritora noturna, aquela que por tantas vezes só observou. Ainda não sabia ao certo quem era aquela ruiva, não pôde se dar ao luxo de procurá-la devido a tantos afazeres que teve durante a semana. Pesou um pouco a hora e se alguma coisa poderia impedí-lo, acreditando na sorte passou sorrateiro pelas pesadas portas da entrada.

O vento frio que bateu no rosto do loiro e a visão de um jardim cheio de folhas marrons cobrindo partes do grande gramado o lembraram que o outono já havia chegado. Ficou um pouco surpreso por nem ter percebido a mudança de estação - menos de uma semana antes ainda era verão - mas esqueceu completamente da breve divagação sobre o clima quando avistou certos cabelos vermelhos fracamente iluminados pela tímida lua que, ainda fina, crescia no céu.

Como de costume, lá estava Virgínia: sentada debaixo da macieira com seu caderno e sua caneta, vestida com o longo casaco escuro. Era diferente para Draco vê-la desse ângulo e saber que ela o via tambem, já que ele sempre chegava primeiro e, tirando a última vez, nunca tinha saído do seu esconderijo em meio às árvores. Descobriu-se apreciador da nova liberdade e caminhou sem pressa e em silêncio até chegar aos pés da ruiva, sabia que ela o percebera. Ainda em pé, esperou até que a mesma terminasse de rabiscar o caderninho, o repousasse no colo junto com a caneta e olhasse para ele. Quando ela o fez, encarando-o com surpresa e curiosidade, ele sorriu de lado e saudou:

- Olá, ruiva. Achou que não iria me ver mais ?

Surpresa e indignação brilharam nos olhos de Virgínia quando ela os estreitou para o garoto. Por alguns segundos pensou se devolveria ou não a brincadeira, mas optou por manter a calma.


- Apesar de achar que Gina daria uma boa cor, na verdade é meu nome mesmo. Enfim, já que não se machucou e eu já sei que você está aqui, não precisa mais se esconder ou esperar que eu vá embora. Se quiser ir... - virou-se para ir embora e começou a caminhar de volta para a macieira - boa noite.


Draco acompanhou com os olhos até que ela chegasse à árvore, sentasse e começasse a escrever. Após a breve conversa seu tédio já se extinguira por completo e não sentia mais sono; sendo assim, por que não descobrir mais sobre a pequena ruiva madrugadora ? Lembrando que não tinha nada a perder, passou uma mão pelos cabelos, colocou a outra no bolso e foi na direção planejada.


Não demoraria tanto tempo quanto ela, já que seus passos eram mais longos, mas fez questão de ir devagar para ter certeza que ela o perceberia. Ao contrário do que previra a garota não esboçou reação nenhuma, então ficou surpreso quando ela deu um último toque no papel com a caneta e olhou pra cima, diretamente em seus olhos, deixando clara a dúvida sobre sua permanência nos jardins.


- O que você tanto escreve ? - perguntou, olhando discretamente para o caderninho.


- Tanto ? Eu mal escrevi um parágrafo...


- Isso foi hoje. Juntando com os outros dias aposto que dá quase um livro. - retrucou brincando, apoiado na árvore.


- Talvez um dia... - disse olhando para o céu e depois bocejando longamente - Acho que já deu minha hora de voltar para o castelo. Boa noite, Draco, até a próxima vez.


O loiro apenas observou enquanto ela juntava o caderno e a caneta, levantava e partia para os portões do qual saíra o que parecia ter sido horas antes sem nem olhar para trás, mas não disse uma palavra sequer. Apenas quando viu o casaco escuro sumir pelo vão da porta que se permitiu um sorriso e uma saudação:


- Até a próxima, ruiva.

Com um salto Gina se pôs de pé e, apesar de o primeiro pensamento que lhe ocorreu ter sido fugir, ela olhou em volta procurando a origem do som. Talvez fosse algo perigoso mas também poderia ser... na verdade não se importava, tamanha sua curiosidade. Avançou o mais rápida e silenciosamente que conseguia até chegar às árvores de onde parecia ter vindo o grito e abaixou atras de um arbusto. Foi com surpresa que encarou as costas de um garoto alto e loiro que parecia agitado e resmungava coisas de um jeito meio enrolado. Abaixou rápido quando ele se virou subitamente aparentando segurar a língua enrolada na camisa e não pode deixar de reparar como o garoto em questão não era de se jogar fora.

Depois de alguns momentos Draco achou seguro parar de pressionar o ferimento e se jogou ao pé de uma árvore falando sozinho e com um ar irritado:

- Ideia absurda! Engatinhar nessa grama molhada... deve ter sido praga. O castelo era mais seguro... pelo menos não me sujei... será que aquela ruiva já foi embora ? Depois dessa tudo que eu quero é minha cama.

Gina o viu arriscar um olhar na sua direção, por cima de sua cabeça, para ver se tinha alguém sob a árvore que estivera à pouco. Estranhando o fato de o tal loiro estar esperando que ela fosse embora e achando que não tinha nada a perder, saiu cautelosa de seu esconderijo:

- Er... Oi ? Você tá bem? Eu ouvi seu grito... Você se machucou ?

Draco levantou tão rápido que quase bateu a cabeça em um galho baixo e Virgínia sorriu; era como se ver no espelho de tão desastrado que o desconhecido era. Tentando se recompor e parecer descontraído, ele se endireitou e colocou as mãos nos bolsos.

- Grito ? Que grito ? Eu tô ótimo, só...tropecei. Mas você não deveria estar nos jardins tão tarde. Eu sou monitor, sabe... poderia te dar uma detenção ou levar a algum professor, ruiva. - comentou com um tom de desafio tentando encurralar Gina.

- Ah, mas aí você já teria feito isso há muito tempo. - desdenhou ela sem se abalar. - Devo ter passado meia hora sentada ali e sei que você me viu porque resmungou que esperava que eu já tivesse voltado. A propósito, eu sou Gina e não "ruiva". E por que que você, monitor, está nos jardins tão tarde ?

Ele a mediu de cima a baixo e resolveu se divertir um pouco.

- Aquele castelo me cansa e vim dar uma volta. Bem, agora fiquei curioso: loira você não é e muito menos morena... Acho que te sobra ser ruiva, não é mesmo ? Ou "Gina" é uma nova cor ? A propósito, meu nome é Draco.

Mais uma noite como aquela e Draco simplesmente iria desistir de patrulhar os corredores, o que era sua função de monitor. Não via motivo nenhum para se manter acordado até mais tarde que todos e ficar andando de um lado para o outro naquele castelo gigantesco se...

- Nada nunca acontece. - resmungou o rapaz virando em mais um corredor depois de quase duas horas patrulhando. Não vira nem sequer uma mosca no seu trajeto que abrandia metade da escola.

Seu tédio estava atingindo o auge lá pela meia-noite, quando cansou de fazer o mesmo caminho repetidas vezes, e resolveu que ninguém descobriria se ele fosse dar uma volta no lago para esvaziar a cabeça antes de dormir. E se alguém descobrisse ele também não se importava, a diversão de ter autoridade sobre os alunos mais novos não superava a chatice das obrigações noturnas.

De tanto pensar nos prós e contras de deixar sua função de monitor, nem se dera conta do quanto andara e só parou quando chegou ao jardim e percebeu que lá fora tinha tanto para fazer quanto lá dentro. Andou a esmo por alguns minutos mas, ao ouvir o som das portas se abrindo, correu para se esconder no meio das árvores que tinham ali perto. Quando teve certeza de que estava totalmente oculto, arriscou um olhar para onde tinha vindo o barulho.

Sua testa se franziu por alguns instantes e não demorou muito para reconhecer a ruiva que saía do castelo. Se não estava enganado, já era a terceira noite em menos de duas semanas que aquela garota aparecia usando o mesmo casaco longo e fazendo as mesmas coisas. Ou quase. Dessa vez ela novamente olhou pro céu e pareceu falar e sorrir para o nada e, também como das últimas vezes, foi andando até uma macieira na beira do lago para se sentar. A diferença foi que, naquela noite, ela resolvera interromper o ritual e pegar uma maçã antes de começar a escrever no caderninho.

Draco não sabia ao certo o por quê de nunca ter-lhe dado um belo susto nessas noites que a vira mas também não se esforçava para descobrir; era simplesmente muito mais fácil ficar sentado na grama, escondido entre as árvores, pensando nos motivos que levavam aquela pequena ruivinha aos jardins tão tarde da noite e por tantas vezes. Como não achava resposta, se ocupava em olhar de longe e esperar a hora que ela voltasse para a escola para ele poder ir depois sem ser visto. Ainda sentado, olhou para os lados se dirigiu engatinhando ao tronco mais próximo para poder se apoiar mas, quando já estava quase chegando, sentiu a mão e os joelhos escorregarem e, com o susto, não teve tempo de amparar a queda, resultando num encontro do seu queixo com o chão. Com um salto levantou e começou a puxar a capa para pressionar a língua que mordeu sem querer e estava tão ocupado que nem percebeu o grito que deixara escapar e agora ecoava pelos jardins.

Já passava de meia-noite quando Virgínia resolveu chutar suas cobertas para o lado, sair do seu dormitório e ir passear pelos jardins da escola. O dia tinha sido vazio e cada mísero detalhe tedioso ficara marcado na sua mente à ferro. Todos os dias sempre a mesma coisa, todas as semanas nunca nada de novo acontecia, os meses eram tão iguais que ela se perguntava como já era agosto se nem se lembrava de ter passado por julho. Até essa insônia que a perturbava ultimamente sem motivo não mudava.

Como já estava acostumada a fazer o mesmo caminho tantas noites, seus pés a levaram diretamente pelos corredores mais seguros (para evitar esbarrar no terrível zelador). Para cobrir seu pijama, usava um casaco escuro e comprido, que balançava suavemente enquanto andava e se agarrava a um pequeno caderno e uma caneta.

Parou apenas quando finalmente se viu do lado de fora do castelo. O vento brincou com seus longos e ondulados cabelos ruivos, jogando-os para trás enquanto ela inspirava profundamente o ar fresco da noite e um sorriso satisfeito brincou em seus lábios finos.

- Olá. Sentiram minha falta ? - disse ela olhando para cima - Eu senti saudade de vocês. Aliás, estão especialmente lindas hoje.

Piscou com ternura para os pontinhos que brilhavam no céu negro e se dirigiu à sua árvore favorita, uma macieira alta e cheia de frutos que ficava perto do lago, olhando atentamente sua copa. Era sua noite de sorte.

Deixou o caderno e a caneta junto ao tronco e se posicionou estratégicamente embaixo de uma maçã muito vermelha. Precisou de três pulos esforçados até conseguir alcançar seu alvo, mas a dificuldade só a deixou mais orgulhosa de si mesma. Sentou, ajeitou o pequeno caderno sobre as pernas dobradas, deu uma mordida na maçã e começou a escrever absorta em pensamentos, sem nem ao menos perceber o par de olhos que a observava de longe.

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